quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Da Visão: O Che vive



Por mais improvável que isso possa parecer, devo confessar que tive a minha fase «guevarista». Nunca fui de esquerda (será defeito?) mas deixei-me seduzir pelo charme do revolucionário idealista que Korda imortalizou. A coisa não teve consequências de maior se descontarmos a experiência inesquecível que constituiu a viagem que fiz (bem antes do filme de Walter Salles) pelos caminhos que um dia Ernesto Guevara de la Serna percorrera numa velha motocicleta com o seu «compagnon de route» (literalmente) Alberto Granado. Mas isso são contas de outro rosário. E feita a declaração de interesses, passemos ao essencial.
Era de esperar que, por ocasião do 40º aniversário da morte do Che, a imprensa (sobretudo pela pena dos cronistas de centro-direita) se enchesse com ensaios sobre o Ernesto Guevara «histórico» e com exercícios de desconstrução do mito guevariano. Os argumentos são conhecidos e, no essencial, os factos mencionados são rigorosos. Nas páginas do Público, Helena Matos desenterra Tatu (a incarnação congolesa do Che) para fazer um retrato de um aventureiro de méritos militares mais do que duvidosos. Na Atlântico (que dedica a capa ao assunto), Rui Ramos fala do «filho literato de uma família de aristocratas e milionários argentinos» que desprezava a imperfeição dos companheiros de revolução e do «povo» em geral. Juntem-se-lhe os fuzilamentos de «La Cabaña», a gestão desnorteada do Banco Nacional Cubano, a arrogância intelectual e a admiração pela Coreia do Norte (para não dar mais exemplos) e o ramalhete fica, de facto, composto. A intenção destes textos (tal como fora a intenção dos textos mais «clássicos»: Arenas, Cabrera Infante, etc.), é como ficou dito, absolutamente compreensível: desconstruir o Che é contribuir para minar, um pouco mais, os alicerces da hedionda tirania castrista. O que, convenhamos, é um nobre objectivo.
Mas acontece que não é preciso ser um militante furioso do Bloco de Esquerda para se reconhecer que «Guevara - o mito», é muito mais do que o ícone instrumentalizado pela nomenklatura cubana ou do que um suposto alicerce ideológico do regime castrista. «Guevara - o mito», por mais «naïve» que seja a ideia, é também (ou sobretudo) a personificação do «homem de causas», do romântico desinteressado e disposto a morrer por ideais, da capacidade de sonhar o Mundo e de mudar o Mundo. Desconstruir o mito é pois disparar contra esse património e esse sonho colectivos. Por muito ingénuos que estes sejam, a questão que se coloca é então a de saber se os fins justificam os meios.
Tenho para mim a resposta clara: substituir o Che «cristianizado» de Freddy Alborta (que o fotografou, já morto, na lavandaria do hospital de Vallegrande) pelo Che «histórico» é um exercício rigoroso mas desnecessário, fútil e até perverso que não se pode justificar em nome do combate aos ideiais marxistas ou à ditadura cubana. Como um dia escreveu Jorge Catañeda: «Há mitos que são maiores que a política ou a ideologia, que são maiores do que as derivas cruéis da história. O Che vive e, desde que não olhemos de perto para a sua vida, continuará a viver enquanto precisarmos dele e da forma que precisarmos dele».
Poderá alguém honestamente dizer que o Mundo em que vivemos já não precisa de mitos?

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